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A volta dos mutirões...

segunda-feira 18 de março de 2013, por Fernando Oliveira

O trabalho comunitário sempre esteve presente na cultura caiçara, mas com tempo isso quase acabou de vez. Agora os mutirões voltam com força...

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O dia 31 de julho de 2010 amanheceu com muita serração. Coisa comum nos dias de outuno e inverno na cidade de Cananéia. Anúncio de céu azul, já sabem os caiçaras que vivem por aqui. Um dia especial na vida de muita gente na Comunidade do Ariri.

Localizada na divisa de São Paulo com o Estado do Paraná, essa comunidade vive dias de festa e alegria com o retorno de antigas tradições caiçaras. Uma delas é o mutirão de varação da canoa.

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Mas para que isso aconteça o mestre artesão escolhe uma árvore caída ou derruba alguma que ele mesmo escolheu e começa a confeccionar a canoa com seus instrumentos de trabalho. Depois de um mês e meio mais ou menos, a canoa está pronta no meio da floresta. Dai vem a pergunta: como tirá-la de lá? E a resposta pronta: chamando alguns vizinhos e amigos para um grande mutirão de trabalho.

E foi isso que Seu Zé Pereira, fandangueiro, artesão e morador tradicional da comunidade, fez nesse dia. Convidou um tanto de gente pra chegar, subir morro acima e depois descer morro abaixo carregando ou empurrando a canoa amarrada com cipós pela proa e popa. Não se trata de tarefa fácil. Ao contrário, os homens se esforçam ao extremo para segurar a canoa que pode chegar facilmente a uns 250 a 300 quilos. A gritaria é intensa e parece desorganizada, mas é fácil perceber que tudo está dentro dos conformes. Alguns desses homens recebem funções específicas que tem nomes: proeiro, cordeiro e mestre da corda são alguns desses nomes. Todos tem que cumprir a risca a sua função e qualquer descuido pode resultar em acidente.

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Mas nem todos são de ferro e em alguns momentos para-se para descansar e saborear a famosa “mãe com a fia”, uma mistura de cachaça e mel que é servida a todos aqueles que querer molhar a goela. A turma se reanima e a descida continua. No caminho, um susto cruza o caminho. Um cobra conhecida como jararacuçu desentoca-se e segue seu destino. Lá embaixo a turma decide: vamos levar essa canoa até a casa de Seu Zé Pereira! E a gritaria recomeça. Os ânimos novamente se renovam regados a cachaça e mel. Estrada afora a puxada continua até chegar a casa de Seu Zé. A caiçarada faz pose pra foto e termina o trabalho.

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Tempos depois, mais precisamente no final de semana dos dias 11, 12 e 13 de dezembro de 2010, o mesmo Zé Pereira decide chamar um novo mutirão comunitário. Dessa vez, convidou homens e mulheres para fazer o tradicional "mutirão de cavação e plantação de rama" em seu sítio localizado na Comunidade Caiçara do Varadouro.

O Varadouro é um lugar magnífico. Preserva aquilo que a gente sonha encontrar quando imagina uma comunidade vivendo em harmonia com a floresta. Tudo muito simples e devidamente organizado. As casas de madeira dão um ar de calmaria ao lugar. Os riachos de água translúcida emocionam aqueles que realmente entendem o poder da natureza.

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A chamada "cavação" é o ato de cavar e montar as covas na terra. Esse trabalho é feito única e exclusivamente pelos homens que constantemente são "reabastecidos" com alguma cachaça oferecida pelo dono do mutirão. A função de "plantar a rama" fica com as mulheres que vão introduzindo pequenos talos do caule da mandioca com brotos, três de cada vez, na terra preparada anteriormente. Elas também oferecem água fresca para a turma que não adere a cachaça. Algumas pessoas mais experientes ficam com a função de selecionar e preparar as melhores ramas para o plantio ter sucesso. Quase sempre esse trabalho dura o dia inteiro com uma parada para o almoço comunitário que no cardápio arroz e feijão da roça, farinha de mandioca, peixe, carne ou galinha caipira.

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Em uma outra oportunidade, tivemos a felicidade de acompanhar um outro mutirão. Dessa vez, Seu Luiz Camilo chamou amigos e vizinhos para fazer o "mutirão de colheita de arroz" que antigamente acontecia com muita frequência, pois ainda se podia plantar arroz sem se preocupar com a legislação ambiental. A chegada no sítio aconteceu bem na hora do almoço: arroz e feijão dali mesmo, abóbora refogada, frango ensopado, farinha de mandioca e suco de limão.

Depois de algum tempo de descanso seguimos todos para a colheita. Já na roça debaixo de um calor muito forte e o solo todo enxarcado todos fez-se a colheita dos ramos do arroz. Havia um número maior de pessoas colhendo, enquanto outras passavam com um saco recolhendo o arroz e algumas vezes mulheres distribuiam água e cachaça para quem quisesse beber. O trabalho comunitário rendeu uma colheita de 10 sacos cada um com uns 30kg mais ou menos. Na volta, cada homem trazia um saco e os mais fortes se arriscavam com dois desses sacos.

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Pronto acabou a colheita e começou o café da tarde, muito bem vindo naquele momento já que todos estavam cansados e famintos. Em seguida, um dos momentos mais aguardados: o baile de fandango. Momento de festa, e diversão, onde se toca, canta, dança e bebe até o dia amanhecer. A festa fandango começou as 20h00, ali mesmo na casa do Seu Luiz, e só um pouco mais tarde, depois que parou a "trovoada", é que o povo seguiu para o salão. Ali sim o pessoal se animou e dançou até a fome chegar de novo, e perto da meia noite, o jantar foi servido. Respostas as energias todos voltaram a dançar e a festa seguiu até as 6h00 da manhã. Não faltou "cataia" e "mãe ca fia" para dar um ânimo a mais nas pessoas e nos tocadores, que eram os que mais bebiam, pois tinha que estar com a garganta bem afiada para animar a festa.

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Vale dizer, que a festa de fandango é ponto comum entre esses três mutirões que acompanhamos, participamos e registramos em foto, vídeo e áudio. Muitas pessoas só aceitam o convite para o trabalho depois que tem a certeza de que a festa acontecerá. Sem dúvida, um importante momento de alegria e convívio social entre as comunidades tradicionais caiçaras.

Alguns moradores nos contaram que antes as pessoas ficavam na casa de quem organizava o mutirão. Por lá, estendiam as esteiras no chão para dormir. Mas quem dormia em dia de mutirão? Quase ninguém porque a noite era reservada para a festa e fandango. Cantadores de diferentes comunidades se juntavam, muitas vezes logo após o mutirão, e começam a entoar seus versos sobre a vida simples do caiçara. Algumas brincadeiras também eram cantadas por esses mestres populares.

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Hoje em dia tudo mudou. Os mutirões pouco a pouco foram se acabando, ora por causa da religião, que pregava (e ainda prega) contra essas festas populares, ora por causa das leis ambientais, que impediram o caiçara de viver como sempre viveu.

Segundo Dona Oliva, moradora do Ariri, o mais importante é não acabar com a tradição. Por isso, a volta dos mutirões é extremamente importante não só para relembrar como era antigamente, mas para reafirmar a resistência da cultura caiçara aos tempos de mudanças e tomadas de decisão vindas de cima pra baixo.

Um salve de alegria e harmonia para a volta dos mutirões ao território caiçara do Lagamar...

Texto: Fernando Oliveira e Ivan C. Neves

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